19.9.12

ódio, paixão, emoção e uma bola

O futebol é, muito provavelmente, o desporto que mais paixões e ódios provoca no mundo. Uma simples conversa sobre futebol pode transformar-se numa acesa discussão em que todos são treinadores, todos sabem as melhores tácticas para ganhar o que quer que seja e todos percebem mais da modalidade do que aquele com que discutem.

Por outro lado, o futebol consegue gerar paixões. Na euforia da vitória, todos são amigos. Uns abraçam-se, outros beijam-se e até há quem peça a cara metade em casamento no relvado do clube do seu coração. Assim, é o futebol.

Mesmo assim, há algo que muitas pessoas não conseguem fazer. Refiro-me a separar a paixão pelo futebol da razão. Felizmente, consigo fazer isso, o que me leva a emocionar com situações relacionadas com clubes rivais do meu Benfica. Ontem, fiquei emocionado quando soube que Lucho González – jogador que admiro bastante – optou por jogar, quando horas antes tinha sido informado da morte do pai. Ainda me emocionei mais, chegando a arrepiar-me, quando no final do jogo, Lucho, quase em lágrimas revelou ter prometido ao pai que marcava um golo, algo que conseguiu.

A situação em si foi suficiente para me emocionar. Um exemplo de força numa situação onde, por norma, força é coisa que não existe, é algo que mexe comigo. Contudo, o caso de Lucho fez-me recordar uma triste situação que vivi quando jogava futebol.

Era uma semana importante. Aproximava-se o jogo que ia marcar a época, entre os dois melhores clubes do campeonato. Balneário moralizado. Equipa na máxima força e um jogador num momento de forma extraordinário. Tudo corria bem e recordo-me que era mais uma noite normal. Mais um treino para ultimar a táctica para o grande jogo, que estava a cerca de 72 horas de distância.

Como sempre, fui dos primeiros a entrar no balneário, algo que sempre fiz. Mas, naquela noite, havia algo de diferente. Assim que entrei, deparei-me com o pai do Rui, o tal jogador que estava num momento de forma excepcional, valendo meia equipa. Apesar do simpático senhor ser daqueles, tal como os meus pais, que acompanhavam a equipa para todo o lado, não era presença habitual no balneário, muito menos numa noite de treino.

Cumprimentei-o sorridente e perguntei pelo filho. “Não vem treinar?”, questionei. “Não. O Rui está no hospital”, respondeu. Estranhei mas julguei ser algo simples, aquilo que o meu cérebro queria acreditar. “Foi fazer algum exame? Amanhã já está cá, certo? É que Domingo temos um jogo importante e ele faz muita falta”, acrescentei. “O Rui não vai jogar. Está muito mal no hospital, teve um acidente de mota”, revelou. Nesse instante gelei.

Com uma força do outro mundo, conseguiu explicar aquilo que se tinha passado com o filho. Após mais um dia de aulas, o meu colega seguia tranquilo na sua mota quando um carro desgovernado, fora de mão e numa curva, acertou em cheio na mota. Felizmente, outro amigo da equipa, que seguia atrás do Rui teve a sorte de voar por cima da viatura. Infelizmente, o Rui não teve essa sorte e ficou em muito mau estado, tendo ficado imediatamente em coma.

As horas foram passando. O balneário ficou um caco. O treino foi o pior de sempre mas havia um jogo a disputar, que não podia ser adiado. Nesse jogo, quase toda a equipa escreveu uma dedicatória especial numa t-shirt que vestiu por debaixo da camisola de jogo. Assim que houvesse um golo, o autor do mesmo iria revelar a sua dedicatória. Além disso, entramos em campo com a camisola do Rui, que foi oferecida ao pai, que em lágrimas estava junto da equipa.

Apesar da força de cada um, perdemos o jogo mas o resultado já não interessava para nada. Quanto a mim, a cada novo jogo até ao final da época, tinha uma dedicatória para o Rui na minha camisola e não havia momento em que não pensasse nele. Naquele dia, e pela única vez na minha vida desportiva, o autocarro saiu do campo onde jogámos e rumou ao hospital onde o Rui estava internado. A equipa juntou-se no hall mais próximo do quarto, onde as lágrimas e os rostos fechados imperavam.

Apesar de saber que seria uma experiência dolorosa, fiz questão de ir ver o Rui. Vesti-me a rigor, parecendo um astronauta e entrei numa sala que nunca esquecerei. Além do meu amigo, estavam mais cinco pessoas em coma, e uma secretária onde estava um médico. Vi o meu amigo como nunca o tinha visto e como nunca mais quero ver alguém. A emoção dominou-me ainda mais, fiquei imóvel e sem reacção a olhar para o meu amigo. Até que ouço uma voz que me diz: “Fale com ele que faz-lhe bem.” Era o médico, ou médica nem sei precisar devido ao estado em que estava. Aproximei-me do Rui, toquei-lhe e falei com ele. Disse-lhe tudo aquilo de que me lembrei. Falei do jogo, do resultado e da falta que ele nos fazia. Disse ainda que a equipa estava a poucos metros de nós a dar-lhe força. Recordo-me que, durante a nossa conversa, o coração bateu mais forte, algo que me encheu de alegria.

Minutos depois tive que sair da sala. Sabia da força do Rui e sempre acreditei na sua recuperação, apesar da gravidade das inúmeras lesões sofridas. Após quase um mês naquele estado, o Rui acordou e foi melhorando gradualmente. Parecia um menino que tinha que aprender tudo na vida. O futebol deixou de ser uma realidade para o Rui, tal como as deslocações de mota. No meio de tanta tristeza, recuperou-se o homem. Por isso é que compreendo e sinto as palavras e emoção reveladas por Lucho ontem.

17 comentários:

  1. caramba, que me deixaste com um nó na garganta!

    :S

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  2. Sem palavras...infelizmente sei bem do que falas e não há nada pior do que ver alguém que amamos num desses estados de vulnerabilidade:( Ainda bem que o teu amigo conseguiu recuperar, ainda que lentamente.

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  3. Porra! Nao contava com esta... nem sabia do falecimento do pai dele :( não deve ter sido fácil

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  4. uff, que fiquei com os olhinhos molhados e um nó forte no coração!

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    1. Recordo-me de tudo como se fosse hoje. Naquelas alturas, passamos a ver a vida de outra forma. Os problemas passam a não ter importância nenhuma.

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    1. Partilhei algo que mexe muito comigo e que não tenho hábito de comentar.

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  6. Emocionei-me e recuei 13 anos na minha vida... Fez no domingo 13 anos que, com a minha mãe em coma profundo no IPO (do qual me disseram que nunca acordaria), fui fazer o exame de conclusão de licenciatura numa cadeira que sempre foi o meu "calcanhar de Aquiles". Apesar da notória má vontade do professor, passei (ao fim de duas horas de exame escrito e outra de perguntas para colmatar o que falhou na prova). Só no fim lhe disse o porquê de estar tão mal preparada. Ficou branco e "engoliu" a frase que me havia dito meses antes ("a vida pessoal nada tem a ver com a de estudante", ao falhar um exame por morte de um familiar). Ao sair da faculdade, liguei para a UCI do IPO e pedi para dizerem à minha mãe que eu tinha passado. "Venha dizer-lhe." Fui e nada me deu mais alegria do que, tal como aconteceu com o teu amigo, ver o batimento cardíaco elevar-se. A minha mãe acordou a 6 de outubro. Faleceu no fim desse mês, mas nada apagará a recordação que me ficou gravada daquele momento em que lhe disse "passei, já está" e ela reagiu. Desculpa a partilha neste teu espaço. Fico contente pela recuperação do Rui :).

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    1. Encantei-me com o teu relato. Mexeu comigo. É impossível ficar indiferente. Obrigado pela partilha :)

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  7. Que história incrível.

    A minha empresa tem um torneio interno de futebol, e há cerca de três meses no dia da final, um dos nossos colegas que por acaso a esse jogo vinha arbitrar teve um terrivel acidente. Faleceu! Infelizmente a tragédia foi ainda maior pois faleceu também pai e filho de 6 anos que seguiam no outro carro, e que iam para o treino de futebol do menino. Foi um dia negro para nós.

    Espero que o teu amigo consiga recuperar ao máximo.

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